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ROBERTO ROMANO

Celso Daniel



Na sexta feira passada, em Santo André, foi oficiada a missa em memória do prefeito Celso Daniel. As palavras perderam o significado, nosso tempo é o da novilingüa exposta por G. Orwel (releia-se o “Apêndice” sobre o tema, no livro 1984). Naquele idioma, o “ministério da verdade” dedica-se à mentira e assim por diante. Na tentativa de entender o que se passou no dia 20 de janeiro, ano fatídico de 2002, abri o dicionário de idéias mais estratégico para a nossa modernidade, a Enciclopédia dirigida por Diderot no século das Luzes. Abro a página no verbete “assassinato”. Nas primeiras linhas vem algo insuportável para todo ser humano que pensa e sente: “pode-se definir o assassinato como um atentado premeditado contra a vida de um homem, bem diferente portanto da morte involuntária cometida no caso de uma defesa legítima”. E mais adiante, retoma o autor: “O assassinato é um dos maiores crimes que perturbam a ordem da sociedade, sendo conveniente puni-lo com as penalidades mais severas”.

O século 18 não foi leniente com a prática do assassinato. Como uma base necessária para punir realmente o assassino, o devido processo judicial é defendido pelos filósofos e juristas daquela época. Contra a tortura (chamada na França “a questão”, pois perguntas eram feitas ao acusado, em práticas atrozes de estraçalhamento dos corpos e das almas), os pensadores pregavam a necessária verdade dos autos, sem que a propaganda religiosa ou política se intrometesse nos procedimentos policiais ou no tribunal. A verdade integra a punição do culpado, permite a defesa do inocente.

A verdade é uma questão lógica, empírica, existencial. O mentiroso não pode ser livre nem democrata, pensam os filósofos do século 18, e repetem até hoje as pessoas retas. A mentira é o simulacro da justiça, o simulacro do ser humano. O verbete “mentira” da mesma Enciclopédia (lida no Brasil do mesmo século 18 por Tiradentes, o estraçalhado na tortura portuguesa) afirma que ela é uma “falsidade desonesta ou ilícita que consiste em se exprimir deliberadamente por palavras ou sinais, de um jeito falso para fazer o mal”. E quem mente assim, o que é? Ainda no dicionário mais importante da cultura democrática moderna, lido por todos os que defenderam um Estado em que a segurança individual deve ser a norma, indica o nome do que usa o assassinato, a tortura, a mentira: hipócrita. Este é “um homem que se mostra com um caráter que não é o seu (…) tudo na vida tem os seus hipócritas: a virtude, o vício, o prazer, a dor, etc. Mas o nome de hipócrita é dado mais particularmente aos homens perversos e falsos, que sem virtude e religião, pretendem fazer respeitar neles as maiores virtudes e o amor da religião. Eles empregam todo o zelo para se dispensar de serem honestos, Empregam todo o zelo para se dispensarem de serem bons, parecendo santos ou heróis. (…) O céu está nos seus olhos, o inferno em seus corações”.

Celso Daniel foi assassinado, torturado e mentiram sobre estes fatos. Quem mentiu e mente sobre os mesmos fatos é hipócrita, finge virtude para melhor assaltar a vida e a alma do povo brasileiro. Celso Daniel sofreu os piores castigos, sobretudo o da morte nas mãos de carrascos a soldo de interesses os mais espúrios. Numa república honesta, sua morte seria investigada com apoio universal, os assassinos descobertos e punidos. Mas não é o que se viu e o que se nota. Não apenas ele, mas várias pessoas foram assassinadas, enquanto a mentira e a hipocrisia mimetizam com perversidade a virtude, a ética, encobrem os assassinos torturadores.

Sem o Ministério Público a mentira, a tortura, a hipocrisia sairiam ilesas no caso Celso Daniel. O povo brasileiro deve aos bravos promotores de justiça este serviço mais do necessário, uma liturgia sublime. A família de Celso Daniel recebe ameaças cotidianas, enquanto os hipócritas e mentirosos continuam sua farsa. Após a morte “misteriosa” do legista que apontou a tortura no corpo de Celso Daniel, outro legista repete o mesmo laudo: estraçalharam aquele homem covardemente. Há uma pergunta no direito que não pode calar: “a quem interessa”? Quem se beneficiou com o crime? Ajudemos a corajosa família de Celso Daniel a responder tal questão. Com ela, virá a paz aos que merecem justiça. Só então o prefeito de Santo André será verdadeiramente sepultado. Só então o cheiro da morte abandonará a pavorosa cena política brasileira. Sim, os mentirosos e hipócritas que usaram o assassinato possuem o céu nos olhos, o inferno nos corações. Que Deus tenha piedade de nosso povo.

Roberto Romano é professor de Fisolofia da Unicamp